quarta-feira, 11 de novembro de 2009

A leitora de Kertész

O escritor Alberto Manguel, por meio da fotografia de André Kertész, mostra que objetos, roupas, tudo tem uma função simbólica: a touca de dormir, uma pequena placa com o número 19, uma corda pendendo do teto (para chamar por auxílio? para puxar a cortina da frente?), mas os livros infligem a seus leitores um simbolismo muito mais complexo do que um mero utensílio: "Porque se trata de uma velha senhora, porque está na cama, porque a cama está num lar para gente idosa em Beaume, no coração da Borgonha católica, achamos possível adivinhar a natureza de seu livro: um volume religioso, um compêndio de sermões? Se assim fosse - o exame com uma lente de aumento não nos diz nada -, a imagem seria de algum modo coerente, completa, o livro definindo a leitora e identificando a cama como um lugar espiritualmente tranquilo. Mas se descobríssemos que o livro era na verdade outra coisa? Se, por exemplo, ela estivesse lendo Racine, Corneille - uma leitora sofisticada, culta - ou, mais surpreendente ainda, Voltaire? E se o livro fosse o Les enfants terribles de Cocteau, aquele romance escandaloso da vida burguesa, publicado no mesmo ano em que Kertész tirou a fotografia? De repente, a velha senhora banal não é mais banal: ela se torna, mediante o simples ato de segurar um determinado livro em vez de outro, uma questionadora, um espírito inflamado de curiosidade, uma rebelde." Alberto Manguel (Uma história da leitura, Tradução Pedro Maia Soares, © Companhia das Letras, 1999).
Foto: © André Kertész (Hospice de Beaune, França, 1929)

3 comentários:

Teleobjetiva disse...

Belíssima foto. Gostei da indicação do livro Uma história da leitura. Abraço!

Nuno Sousa disse...

De facto uma imagem é muito mais do que o que está representado pictóricamente.
Mais: uma imagem é mais do que o próprio autor regista ou quer transmitir.
Uma imagem é fruto da cultura de quem a vê e de quem a lê.

Claudio Versiani disse...

Cara Meg,
como sempre é muito bom navegar pelas páginas do Postal amigo. A rede é mesmo pródiga.
Gracias por compartilhar.
Ab.
E aqui uma bela história de leitores, rebeldes e fotografia...
Che Guevara, o último leitor
http://www.picturapixel.com/?p=6226