Um ensaio de Umberto Eco tem seu foco na imagem de um indivíduo, a figura central, isolada, durante uma manifestação contra a repressão, em Milão, em 14 de maio de 1977. A fotografia foi publicada em todos os jornais italianos, após ter sido estampada pelo Corriere d’Informazione, e a imagem torna-se ícone, a referência à revolta dos "anos de chumbo". Eco interpreta as respostas reais às imagens, lembrando que uma explicação sozinha nunca é suficiente para explicar tudo: "O fato é que apareceu uma foto."
"Se for lícito (mas é cabível) fazer observações estéticas num caso desses, essa é uma das fotografias que passarão à história e que irão aparecer em mil livros. As vicissitudes de nosso século são resumidas por poucas fotos exemplares que marcaram sua época: a multidão desordenada que se derrama na praça durante "os dez dias que abalaram o mundo", o miliciano morto por Robert Capa; os marines que fincam a bandeira numa ilhota do Pacífico; o prisioneiro vietnamita justiçado com um tiro na têmpora; Che Guevara arrebentado, esticado na mesa de uma caserna. Cada uma dessas imagens tornou-se mito e condensou em si uma série de discursos. Superou a circunstância individual que a produziu, deixou de falar daquele ou daqueles personagens isolados, mas passou a exprimir conceitos. (...) Aquela foto não se parecia com nenhuma das imagens em que se havia inspirado, ao menos durante quatro gerações, a idéia de revolução. Faltava o elemento coletivo, aparecia de modo traumático a figura do herói individual. E esse herói individual não era o da iconografia revolucionária. (...) A foto, para uma civilização já agora habituada a pensar por imagens, não era a descrição de um caso isolado (e, de fato, não interessa saber quem era a personagem, nem a foto permite identificá-la), era um raciocínio. E funcionou. (...) A partir do momento em que surgiu, seu trajeto comunicativo começou: e uma vez mais o político e o privado foram atravessados pelas tramas do simbólico que, conforme sempre aconteceu, demonstrou-se produtor da realidade." (L’Espresso, 29 de maio de 1977).
Como previu Umberto Eco, a foto resultou num livro (Storia di una foto, por Sergio Bianchi, 2011) e, com certeza, será reproduzida em 999 blogs.
(Umberto Eco, Viagem na realidade cotidiana; tradução Aurora Fornoni Bernardini e Homero Freitas de Andrade. - Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984, p. 269).
Foto: autor desconhecido / Corriere d'Informazione (Milão, 14 de maio de 1977)
2 comentários:
Ei, Meg, valeu pela releitura.
Oi, Giuliano
Uma releitura recortada, inclusive, um trecho do qual gosto muito: "pistoleiro do Oeste".
Foi uma surpresa descobrir a edição de Bianchi.
Beijo!
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